Quando falha o olho clínico

A receita do sucesso é das mais requintadas. Seus ingredientes são difíceis de reunir e dosar. Quantos talentos nunca o conheceram e quantos medíocres com a pitada de sorte são premiados com ele. Quantos milhões são gastos com o condimento da promoção sem despertar apetite, enquanto outros insossos viram banquete. Outro tempero indispensável é a intuição, aquele estalinho que faz com que determinada música traga o sabor do sucesso, independente de sua qualidade. Muitas vezes o êxito tem escapado a um intérprete, por nã fazer fé na música que lhe é oferecida e essa se consagra na criação de outro. Contemos algumas histórias de músicas renegadas de nosso cancioneiro.
No carnaval de 1952 uma marchinha apilantrada fez furor. A letra, cheia de veneno, conclamava todo mundo a sassaricar, esquecendo as agruras da vida e ironizava os matusalênicos paqueradores que ficavam postados à porta da lendária Confeitaria Colombo.

Sá-sassaricando
Todo mundo leva a vida no arame
Sá-sassaricando
A viúva… o brotinho e a madame
E o velho na porta da Colombo
É um assombro
Sá-sassaricando…

Pois bem a música foi recusada por Heleninha Costa, que achou deselegante a alusão aos velhos galanteadores. O autor, Luiz Antonio, não quis mexer na letra e entregou para a minivedete Virgínia Lane, que se consagrou.

Em 1941 o grande sucesso carnavalesco foi um valsa de Nássara e Frazão, aproveitando com muito talento a Valsa dos Patinadores.

Nós queremos uma valsa
Uma valsa para dançar
Uma valsa que fale de amores
Como aquela dos patinadores…

Foi composta especialmente para Dircinha Batista que não se animou a gravá-la, alegando que valsa não tinha chance no carnaval. Os autores resolveram então, entregar ao valsista Carlos Galhardo, que farejou a receptividade pela letra brejeira. Não deu outra coisa.

A batucada Nega Maluca, de Fernando Lobo e Ewaldo Ruy foi outro grande sucesso:

Tava jogando sinuca
uma nega maluca me apareceu
Vinha com o filho no colo
E dizia pro povo que o filho era meu
Não senhor
Tome que o filho é teu
Não senhor
Guarde o que Deus lhe deu…

Feita para ser cantada por homem, pois faz referência ao duo amoroso lusitano-escurinha, acabou sucesso com Linda Batista. Blecaute recusou-se sem maiores explicações, dizem alguns, por achá-la depreciativa. Chico Alves também esnobou-a.

Na folia de 37, Castro Barbosa gravou a gostosa marchinha de Paulo Barbosa e Oswald Santiago Lig-Lig-Lé, louvando os baratíssimos restaurantes chineses (que falta fazem hoje!).

Lá vem o seu china na ponta do pé
Lig-lig-lig-lig-lig-lig-lé
Dez tostões vinte pratos
Banana e café…

A marcha foi oferecida a Almirante, que se desculpando por estar com a agenda lotada para aquele carnaval, não a gravou,  perdendo a oportunidade se ser o iniciador do ciclo oriental em nossa música popular.

Ai que saudades da Amélia(1) foi êxito inesperado no carnaval de 1942, já que por sua dolência era supostamente anticarnavalesca. Houve uma verdadeira via sacra dos autores Mário Lago e Ataulpho, sem conseguir interessar os intérpretes. Não tendo outra saída, Atalupho Alves levou-a ao disco e o povo deu o seu aval. Sílvio Caldas carrega até hoje o desgosto de tê-la recusado.

Pensei que não fosse fazer sucesso, confessa o Caboclinho. Orlando Silva
argumentou que já estava com Atire a primeira pedra dos mesmos autores. Ciro Monteiro driblou a dupla. Moreira da Silva foi contundente: “Valsa fúnebre não pega no Carnaval”. O único que quis gravá-la foi Déo, mas o diretor da gravadora não deixou. Depois que a música estourou, ficou possesso, disse uns desaforos ao diretor e saiu da gravadora.

1954 foi um ano de pouca vibração na música popular e teria permanecido no marasmo não fosse um belíssimo samba de Ataulpho:

Pois é, falaram tanto
Que desta vez a morena foi embora
Disseram que ela era a maioral
E eu é que não soube aproveitar, ai, ai, ai…

Por incrível que pareça a obra ficou um ano engavetada pelo cantor Francisco Carlos. O descaso obrigou Ataulpho a improvisar-se mais uma vez em intérprete.

Depois de muita luta o sucesso aproximou-se de Carlos Galhardo em 1934, quando Carolina, Carolina, de Hervê Cordovil:

Carolina, Carolina
Vai dizendo por favor
Carolina, Carolina
Que você me tem amor…

Sorte sua, pois Almirante e Chico Alves não simpatizaram com a carolina que lhes havia sido oferecida antes.

Outro clássico que quase ficou inédito foi Helena, Helena, de Antonio Almeida e Secundino.

Eu ontem cheguei em casa, Helena
Te procurei e não te encontrei
Fiquei tristonho a chorar
Passei o resto da noite a chamar
Helena, Helena, vem me consolar…

Recusado que foi por Carlos Galhardo, Chico Alves resmungou: Não, não, isso é um bagulho. Engavetada por quatro anos. Só então, quando era organizador de shows para o cassino da Urca é que Antonio Almeida mostrou o samba aos Anjos do Inferno. Não morreram de amores pela música mas, como Antonio Almeida erro o patrão… Hoje existem cerca de 114 gravações de Helena, Helena.

Carinhoso foi outro parto difícil. Francisco Alves torceu o nariz. Galhardo deu o bolo no dia da gravação. Orlando Silva teve olho clínico e consolidou seu prestígio.

Francisco Alves, segundo seus contemporâneos tinha um tremendo faro para o sucesso e era também uma espécie de termômetro. Se recusasse uma canção, ninguém  mais queria gravá-la. Os autores procuravam por esta razão esconder o fato. Pelas histórias que estamos contando, vimos que seu olfato não era infalível, de vez em quando devia andar de nariz entupido. Vejam só, classificou de bagulho (gostava da palavra) a composição que Haroldo Lobo e David Nasser lhe ofereceram. Nelson Gonçalves gostou e foi aquela consagração no carnaval de 1950:

Guardo ainda bem guardada a serpentina
Que ela jogou
Ela era uma linda colombina
E eu um pobre pierrô…

No mesmo ano, Chico se redimiu e não relutou em gravar Lili, correndo a descrença por conta de Jorge Veiga, que antipatizou com o nome e num acesso de brasilidade cismou de trocar o título para Ceci.

Lili, se o nosso amor morrer
Eu sei que vou chorar
Eu sei que vou sofrer…

Uma das nossas mais belas canções, Favela, de Roberto Martins e Valdemar Silva, foi negaceada por um trio respeitável: Aracy de Almeida, Orlando Silva e Carlos Galhardo. Chico Alves imortalizou-a.

Favela, oi favela,
Favela que trago no meu coração
Ao relembrar com saudade
A nossa felicidade…

Em 1937 Sílvio Caldas recusou-se a gravar Mamãe eu Quero, pois além de achá-la fracota, não acreditou nem no malicioso refrão de fácil consumo. Hoje é realmente uma de nossas poucas músicas conhecidas em todo o mundo.

Geraldo Pereira produziu pouco, porém, só coisa de primeira. Sua Falsa Baiana é antológica:

Baiana é aquela
Que entra no samba de qualquer maneira
Que mexe e remexe
Dá nó nas cadeiras
E deixa a moçada com água na boca…

O cantor Roberto Paiva, bom sambista, não tendo o prestígio que merece, ainda por cima é azarado. Um dia e que estava aborrecido, tirou sua chance de emplacar o grande sucesso de sua carreira. E olha que não foi por falta de insistência de Geraldo Pereira, que o esperou em frente de casa com regional e tudo, quase que compelindo-o a ouvir o samba. Não adiantou. Estava grilado com a humanidade naquela noite, não se sensibilizou, a música entrou quadrada no seu ouvido. Despediu-se impaciente sem saber que se despedia da fama.

Carcará projetou dois nomes na Música Popular: o autor João do Vale e a intérprete Maria Bethânia. A composição porém, só chegou à cantora baiana depois que Luís Gonzaga e Nora Ney a recusaram.

É unânime: o hino da seresta brasileira é Chão de Estrelas de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, originalmente nomeada Sonoridade que Acabou. Quem deu título atual foi o poeta Guilherme de Almeida. O próprio Orestes não queria a música gravada, argumentando: Ninguém vai cantar decassílabos. Estava errado.

Certa vez um velhinho muito simpático procurou Orlando Silva com uma partitura embaixo do braço e apresentou-se: “Sou o pai de Silvio Caldas e queria mostrar uma composição minha ao senhor.” Orlando ficou cheio de dedos e perguntou por que não entregara ao filho. “Ele está sempre apressado, nunca quis parar para ouvir. Era a bela valsa Neusa que fez muito sucesso. Depois Slvio andou dando uns resmungos.

Para mim é um dos maiores sambas de todos os tempos:

Chorei, não procurei esconder
Todos viram
Fingiram pena de mim, não precisava.
Ali onde eu chorei, qualquer um chorava,
Dar a volta por cima que eu dei,
Quero ver quem dava.

Isso aí, Volta por Cima, de Paulo Vanzolinni. A excelente Inesita Barroso não sintonizou com ela.

Ponho mais uma vez em dúvida a decantada intuição de Francisco Alves,m citando situações onde ele deu branco. Lamartine ofereceu-lhe O Teu Cabelo Não Nega e Marchinha do Amor. Ele preferiu a Segunda, o que temos que reconhecer foi a escolha menos feliz. Bide e Marçal mostram-lhe Agora é Cinza e Vivo Sonhando. Ficou sonhando e Mário Reis, com quem estava estremecido, fez a festo com Agora é Cinza.

Você partiu
Saudades me deixou
Eu chorei.

Eis outra obra prima: Caminhemos de Herivelto Martins.

Não, eu não posso lembrar que te amei
Não, eu preciso esquecer que sofri
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou
Pra nós dois.
Caminhemos
Talvez nos veremos depois.

Chico Alves engambelou Herivelto durante dois anos. Este mesmo conta:

“Eu pedia notícias ao Haroldo Barbosa, assistente dele, e este respondia que o Chico tinha ouvido, gostado e ficado nisso. Um dia eu ameacei dar pra outro. Ele ficou espantado: Vai dar pra outro por quê? Você não me deu a música? Na verdade gravou só pra me agradar. Agora, depois que começou a explodir a música queria apostar uma gravata como ia ser sucesso.”(2)

A marcha de Miguel Gustavo Franzoca de Rádio foi o estouro do Carnaval de 1958:

Ela é fã da Emilinha
Não sai do Cesar de Alencar
Grita o nome do Cauby
E depois de desmaiar
Pega a Revista do Rádio
E começa a se abanar.

A exemplo de O Teu Cabelo Não Nega que acabou sendo gravada pelo cômico Castro Barbosa, ela, por todos repudiada, acabou consagrada e consagrando o palhaço Carequinha. Olha aí, a consagração pode estar debaixo dos olhos e você fazer vista grossa. Olho vivo!

Notas

1-Amélia ficou famosa, virou verbete no aurélio, venceu Carnaval, virou música de meio de ano e continua até hoje com a origem obscura. David Nasser em O Velho Capitão, página 298, diz ter presenciado quando Aracy ofereceu o mote a Wilson batista que não se interessou. Nessa versão Amélia era cozinheira. Aracy relata que seu irmão vivia lamentando a saída de uma empregada quase perfeita, frisando sempre: “Amélia, aquilo sim é que era mulher de verdade”. Nestor de Holanda, em Memórias do Café Nice, conta que Aracy ofereceu o tema diretamente a Mário Lago e Ataulpho Alves. A versão de Mário Lago foi dada no fascículo n° 7 de MPB, Editora Abril. Fala que tomou conhecimento da existência da Amélia sozinho e que esta era a lavadeira de Aracy. Ataulpho depõe (Sua Excia. O Samba – Henrique Alves, pg. 76) “Eu já tinha a música e pedi os versos ao Mário. Ele escreveu o poema e me deu”. (Mário Lago narra o inverso, ele é que levou os versos a Ataulpho). Continua Ataulpho: “Mudei alguns versos para melhor adaptar à minha música. Quando cantei o samba para ele ficou furioso dizendo que aquele samba não era dele, que não tinha escrito aquilo”.

2-Relata ao autor.

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