As mulheres nem sempre tem sido louvadas pelos nossos compositores. Existem os adeptos da surra terapêutica e do carinho paleolítico. O Carnaval, na sua irreverência é o maior manancial de temas onde são receitadas as sacudidelas como corretivo ou como insólita manifestação de ternura.
Caninha, que teve muito prestígio na década de vinte compôs o Está na Hora, onde vara de marmelo estava em riste:
Mulher danada
Toma vergonha na cara
Se você não toma jeito
Dou-te uma surra de vara.
Sinhô, o Rei do Samba, mulato talentoso e pernóstico, lança em 1924 o samba Já, Já, que classificou como samba democrático:
Se essa mulher fosse minha
Apanhava uma surra já, já
Eu lhe pisava todinha
Até mesmo eu lhe dizer chega.
Se esse massacre for atitude democrática… Em outro samba, Minha Paixão, ele banca o morcego, primeiro sopra:
Não quero teima nem discussão
Meu doce bem, minha paixão.
Depois mete as presas:
Olá, Olá tu bem mereces um pontapé.
Em 1929, Ary Barroso, quitanista de Direito, muito mais propenso à música que às leis ganha o concurso carnavalesco que lhe permite sair das aperturas e casar:
Esta mulher há muito tempo me provoca
Dá nela, Dá nela
É perigosa fala mais que pata choca
Dá nela, dá nela.
No mesmo ano Chico Alves e Ismael Silva lançam Amor de Malandro, onde defendiam o cachação gratificante:
Amor é o de malandro, meu bem
Melhor do que ele ninguém
Se ele te bate
É porque gosta de ti
Pois bater em quem não se gosta
Eu nunca vi.
Heitor dos Prazeres concorda em Mulher de Malandro:
Mulher de malandro sabe ser
Carinhosa de verdade
Ela vive com tanto prazer
Quando mais apanha
a ele tem amizade.
Oswaldo Nunes reforça a tese masoquista:
Mulher de malandro, rapaz
Apanha um dia
No outro quer mais.
Em 1932, Lamartine Babo surge com o samba Só dando com uma pedra nela:
Mulher de setenta anos
Cheia de desenganos
Que usa 25 gramas
De vestido na canela
Só dando com uma pedra nela.
Por coincidência, no mesmo ano Noel Rsa aparece com o lançamento de um petardo: Mulher Indigesta:
Mas que mulher indigesta, indigesta
Merece um tijolo na testa.
Em outra composição o Poeta da Vila ameaça com novo corretivo:
Toma cuidado que te ripo
Porque tu não és meu tipo.
Em Nunca… Jamais mostra que é durão:
Qualquer dia eu perco a paciência
Digo uma inconveniência
E depois te meto os pés.
Ary Barroso volta ao carnaval de 1938 com Boneca de Pixe:
Não me fraseia ó muié canaia
Se tu me engana vai havê banzê
Eu te sapeco dois rabo de arraia
E te piso o pé.
Carmem Miranda em Mulato de Qualidade, de André Filho, mostra que há gosto para tudo:
Vivo feliz no meu canto sossegada
Tenho amor, tenho carinho
Tenho tudo, até pancada.
A mesma Carmem, o mesmo André, mais pancada:
Tu ficas em casa e eu vou pra rua trabalhar
Tu és meu homem do peito
Não podes te amofinar
Tu não és mau, és bom demais
E se me dás tanta pancada
É porque eu gosto e te peço.
A Pequena Notável parece que gosta do negócio. Em 1930 grava mais uma:
Mulher, eu vô te dá pancada
Inté te vê bem machucada.
Até o comedido Joubert de Carvalho se anima com o conformismo da cantora e dá para que ela grave Esta vida é muito engraçada:
Eu vou te dar pancada
Te morder, te judiar
Isso não é nada
O pior é ter que te aturar.
O Women Libs deve ter tido engulhos ao ouvir essas duas que se seguem:
Sem me bater eu te amo
Bate, meu bem
Que eu gamo.
(Apache, de Roberto Lara – Carnaval de 1969).Não me bata, meu amor
Porque eu te amo
Não me bata amor
Se bater eu gamo.
(Mário Pereira e j. Quadrado – Carnaval de 1974).
Na primeira vez que Portela desceu o morro foi cantando um samba truculento de Alvarenga:
Carinho eu tenho demais
Pra vender e pra dar
Pancada também não há de faltar.
O bloco Bafo da Onça em 1964 saiu cantando um samba meio indelicado:
É o pau, é o pau que a nega levou
Depois do castigo ela endireitou.
E o pau continua cantando:
Eu não bati para machucar Madalena
Pare de chorar
Eu apenas apliquei-lhe um castigo
Pra você aprender a viver comigo.
(Lélio França e Pascoalino Melilo – Carnaval de 1974).
João Roberto Kelly, em 1971 usou a psicanálise do arrocho:
Menina sai da fossa
Senão te dou uma coça
Te bato, te puxo o cabelo
Boto teu nome no gelo.
Rossini Pinto, no Carnaval de 1972, invalida o ditado Pancada de amor não dói:
Meu amor me bateu
Doeu, doeu.
Fora dos festejos momescos encontramos, quem diria, o romântico Vicente Celestino botando as manguinhas de fora:
Oh Fru Fru, Flor da Noite
Dos amores sem fim vives tu
Que há muito esqueceste de mim
Porque bati muito em ti sem ter dó.
Seu Reverendo também faz propaganda à pancadaria:
Seu reverendo sou um homem de paz
Mas assim já é demais
Qualquer dia eu viro mau
Desmanche esse casório ou quebro ela de pau.
Tom e Dito já começam xingando no título: Cretina:
Eu lhe ataco e lhe acato
Eu lhe pego e lhe bato
Vai doer.
A paixão futebolística de um vascaíno não é mole:
Quando você gritou Mengo
No segundo goal do Zico
Tirei sem pensar o cinto
E bati até cansar.
(Gol anulado – Aldyr Balnc e João Bosco).
Ary do Cavaco fez um samba de troglodita: Eu sou o bicho homem.
Se andares direitinho
Terás uma vida eterna
Se errares eu farei
Como os homens da caverna
Te arrasto pelos cabelos
Te penduro pelas pernas.
Caco Velho cantou a canalização de sua escurinha:
Minha nega na janela está tirando linha
Eta nega, tu é feia que até parece macaquinha
Gritei pra ela: vá já pra cozinha
Dei um murro nela e joguei dentro da pia
Quem foi que disse que a nega não cabia?
Lupscínio Rodrigues não poderia faltar. Ei-lo num corpo a corpo em Amigo Ciúme.
Quem nos vê brigando
Quase nos matando
Há de pensar que essa louca não gosta de mim.
Aldyr Blanc e João Bosco ainda conseguem se repremir:
Bem que eu queria
Dar com fé uma cacarecada
Mas minha nega
É maior e vacinada.
Beto Sacala não consegue a dissuasão:
Ela tem o micróbio do samba no sangue
O que posso fazer
Nem amor nem pancada dá jeito
Da nega obedecer.
Aí estão algumas das obras de afirmação machista. Elas nunca desaparecerão, pois o tema parece fascinante, menos para as vítimas, é claro.