A perspectiva da emancipação do índio está causando polêmicas, enquanto ele continua em um tubo de ensaio, arriscado a ser submetido a experiências sociais macabras. Para a grande maioria dos brasileiros a imagem do nosso selvagem é enganadoramente cor-de-rosa, já que o imaginam levando um vidão, sem horário, sem patrão, sem lenço e sem documento. Os compositores populares, em destaque os carnavalescos, concorreram muito para que esse enfoque falso se popularizasse.
As composições retratam-no como um protagonista pitoresco: sagaz, sempre passando a perna nos outros, conquistador arrebatado e irresistível. Podemos dizer que o boom do indígena como tema começõu em 1961, quando dois excelentes compositores carnavalescos, Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, driblaram a censura, lançando a maliciosa marcha Índio quer apito aproveitando uma anedota em voga:
Ê, ê, ê
Índio quer apito
Se não der pau vai comer
Lá no Bananal mulher de branco
Levou pra índio colar esquisito
Índio viu presente mais bonito
Eu não quer colar
Índio quer apito.
Parece que o apito o decepcionou, como se vê em Índio agora quer casar, de 1971:
Índio não quer mais apito
Índio agora quer casar
Dá mulher pra índio
Para o índio se casar
Se não der mulher pra índio
Índio vai querer brigar.
Como reagiriam Peri e Ubirajara diante das insinuações contidas em Mais um Guerreiro, de Clóvis de Lima e Lord Chivas, para o Carnaval de 1973:
Índio não quer mais apito
Índio agora anda muito esqisito
Morde o dedinho
Bate com o pé.
O machismo é uma constante. Sou Tupiniquim, lançado em 1968 é um exemplo:
Eu sou tupiniquim
Não preciso de apito
Se o broto dizer não
Conquisto só no grito.
No Carnaval de 1971 Carmen Costa cantava Índio quer mulher, que aliás parece ser outra fixação dos nossos silvícolas:
Índio está com sede
Quer beber
Índio está com fome
Quer comer
Índio quer brincar
Índio quer pular
Índio quer mulher pra namorar
Se não me der
Mulher pra brincar
Índio pega flexa
Vai brigar.
Até na tribo quando o negócio é saia, há quebra de hierarquia:
Índio vai pedir
Pro cacique dar
Uma índia boa
Para ele se casar
o índio vai pedir
Cacique tem que dar
Se cacique não der
O pau vai quebrar.
(Oswaldo França, Carnaval de 1969).
A indigência das composições é a regra. Jair Silva e Pedro Saraiva conseguiram criar a insólita mistura que batizaram de Cacique na Onda, para os festejos de 1969:
Ê, ê, ê
O cacique mandou dizer
Índio não corta cabelo
Tá querendo yê, yê, yê
Gostei da onda
Lá tem mulher
É por isso que o índio quer.
Celso Mendes, no Carnaval de 1966, já prenunciava a emancipação:
Ô, ô, ô
Até o índio bossa nova já ficou
Não usa flecha
Não mata gavião
Não usa tanga
Tem até televisão.
Telegrama do Cacique é outra mostra de deslumbramento:
O cacique passou telegrama
Tum, tum, tum
A índia se mandou
O cacique deu alarme geral
Essa índia veio de Bananal
Tá tirando onde de carioca
Não quer mais saber de voltar pra maloça.
O Índio Cara de Pau, de Vicente Amar e Roberto Muniz parece que não se iludiu com o mundo dos caraíbas e volta às origens:
Índio cara de pau
Vai voltar pra Bananal
Terra de branco só tem fofoca
Índio vai voltar pra maloca
Vai voltar
É ordem do pajé
Terra de branco não dá mais pé.
A imagem de boa-vida é sempre lembrada, como em Índio do Xingu, dos talentosos Klécius Caldas e Rutinaldo:
Eu vou, eu vou
Pras mata do Xingu
Índio mora de graça
Índio come caça
Índio anda nu.
A fantasia dos autores atingiu o clímax no Carnaval de 66, desencadeando uma onde canibalismo:
Chegou a tribo de índio valente
De índio antropófago
Que come gente
Não vim pra brincar
Vim cumprir meu dever
O cacique mandou a gente comer
Essa gente comer.
(Castilho Jackson do Pandeiro, de Castro).Vai começar o festim
Estou de flecha na mão
Mulher que não olha pra mim
Vai entrar no caldeirão.
(M. Ferreira e Gentil Jr.)
Ainda bem que Jorge Duarte e Arthur Montenegro tranqüilizam o país em Índio Moderno:
Não tenha medo
Minha tribo é diferente
índio tá moderno
Já não come gente.
Como vemos, a nossa Música Popular tem posto um biombo colorido à frente do problema do índio. Á exceção dos criadores carnavalescos, com sua abordagem quase caricata, totalmente distanciada da realidade, os compositores não se sensibilizam com sua luta pela auto-preservação. Algumas tímidas tentativas surgiram, como Martinho da Vila Tribo dos Carajás, onde diz:
E o índio cantou
O Seu canto de guerra
Não se escravizou
Mas está sumindo da face da terra.
Djavan também se manifesta:
Terra de índio
Nessa terra tudo dá
Não para o índio.
O conjunto de vanguarda Língua de Trapo não tem nada de alienado:
Xingú
Já trocou Iracema pela Lady Zu
E o tupi
Pelo I love you.
Chorando pela Natureza de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro é um libelo:
As matas sumindo de nossa bandeira
O ouro cruzando as fronteiras do mar
O azul é só poeira
O branco em guerra está
E o nosso índio tombou
Pouca gente lutou
Pela sua defesa.
Jorge Ben, considerado um talentoso descompromissado pára para pensar e surge contundente:
Todo dia era dia de índio
E no entanto hoje seu canto triste
É o lamento de uma raça
Que já foi muito feliz
Pois antigamente
Todo dia era dia de índio.
Se a inconsciência persistir e a maioria continuar silenciosa, quando resolverem cantá-lo terão que compor um réquiem.