Herivelto Martins sem segredo

Segundo contemporâneos seus que entrevistei era chamado Galo Garnizé por ser pequeno e esquentado. Exigente no trabalho não fazia concessão à incompetência e corpo mole no trabalho, coisa muito comum entre os artistas de sua época, farristas e boêmios. Todos os conjuntos que criou foram comandados com mão férrea. 

Sua galeria de composições de alto nível é impressionante. Desfilemos parte delas: Ave Maria no Morro (Barracão de zinco, sem telhado, lá no morro…); Caminhemos (Vou indo caminhando, sem saber aonde chegar…) Cabelos Brancos (Por ela vivo aos trancos e barrancos/Respeite ao menos os meus cabelos brancos…) Pensando em ti ( Eu amanheço pensando em ti/ Eu anoiteço pensando em ti…) burilou Praça Onze ( Vão acabar com a Praça Onze/ não vai haver mais Escolas de Samba, não vai…) A Praça Onze acabou mesmo para dar passagem `a Avenida Getúlio Vargas. Carlos Gardel (Se cantavas a tragédia das perdidas, compreendendo suas vidas (…) Por isso enquanto houver um tango triste , um otário, um cabaré, uma guitarra/ Tu viveras também , Carlos Gardel) Foi proibida na Argentina por Perón que achou a obra um acinte á dignidade portenha. Muitos sucessos: Atiraste uma pedra, magistralmente revivida por Bethânia;    Nega Manhosa, Segredo (O peixe é pro fundo das redes/segredo pra quatro paredes); Camisola do dia ,(um céu azul de organdi…) que recebeu críticas de estilistas idiotas que argumentaram que o organdi espetava o corpo. Teve outros aborrecimentos. Em 1935 uma marchinha chamada’ Seu Condutor’fez enorme sucesso na interpretação da dupla caipira Alvarenga e Ranchinho que Herivelto lhes entregou a pedido. Só que os sabichões não colocaram seu nome e o caso foi parar na justiça. Já Ave Maria no Morro foi diferente. Ele mesmo ofereceu a coautoria a seu compadre Benedito Lacerda que debochou: “Tá muito bonito. É uma música ótima para cantar na igreja” Errou, a obra transpôs fronteiras. Chegou até a ser desfigurada. Em Nova York, numa loja de discos o funcionário colocou uma versão castelhana que dizia: “AI, Rio, desgraciado, pobre… (Coisa de doido) Praça Onze partiu de sugestão de Grande Otelo, que sempre inconsequente, dissipador, vivia protegido por Herivelto que gostava muito dele. Otelo fez versos quilométricos, e iniciava assim; “Meu povo, este ano a escola não sai/ Vou lhe dar explicações/ Não temos mais Praça Onze para nossas evoluções.” O protetor burilou a letra tornando-a um dos maiores sambas de todos os tempos. No início da década de 40 a guerra estava a todo vapor na Europa e África. O Brasil  mantinha-se neutro apesar de ser simpático aos nazistas e fascistas. Os Estados Unidos perceberam isso e criaram uma estratégia para nos aliciar. Enviaram para cá o jovem gênio do cinema, Orson Welles, que deslumbrara o mundo com  “Cidadão Kane”, para realizar um documentário que nos seduzisse. Com penetração em todo Rio Herivelto foi convidado para ser consultor de samba do americano. E levou consigo o indomável Otelo. Ele conta; “ Depois das filmagens saíamos para a farra. Welles entornava tonéis  até de madrugada mas exigia “ Tomorrow, 8 o’clock” No dia seguinte mesmo ressacado estava lá às 8. Nós atrasávamos com a velha desculpa carioca: “o trem atrasou”. Welles acabou despachado de volta por não querer fazer um filme cor-de- rosa, rodando cenas com nossas mazelas.

“Caminhemos” como ele mesmo revela :”foi fruto do clima adverso na minha casa quando meu casamento com Dalva ( de Oliveira, com quem foi casado)começou a deteriorar.” Esse desgaste familiar acabou resultando num duelo musical que emocionou o Brasil e merece ser retratado em outro artigo.

Quando o entrevistei a primeira vez nada percebi que justificasse sua fama de estopim curto. Recebeu-me no hotel e se desculpou por ter um compromisso e gentilmente pediu meu nome e anotou-o. “Espero você no meu show logo mais. Vou deixar seu nome na portaria.” Assim fez e tive o privilégio de assisti-lo junto com o Trio de Ouro e seu filho Pery. O melhor veio depois: ao final fomos todos para a beira da piscina onde ficamos “serenateando “ até o sol raiar. Inesquecível!

No ano passado completaria cem anos. Esquecido pela mídia, mas pelo menos aqui prestamos um pouco da homenagem que merece.

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