Inspiração ou transpiração eis a questão

A existência da inspiração, estro, engenho poético ou qualquer outro nome que se lhe dê, dentro do processo de criação de uma obra artística é, sem dúvida, um assunto passível de interminável discussão. Os crédulos não abrem mão de terem sido impregnados pela aura, enquanto os descrentes encaram com desdém, classificando de pueris tais enlevos. Uma coisa porém é certa, sejam prós ou contras, tem que haver um outro elemento, catalizador imprescindível: o talento.
Sem ele não adianta ser inspirado ou diligente, a obra será sempre pífia. Vejam como é polêmico. Manoel Bandeira diz: “Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia quer.” “Até para se atravessar uma rua precisa inspiração”. João Cabral de Mello Neto já acha que um poema pode ser concebido racionalmente, resultante de uma elaboração mental. Paul Valèry afirmava: “O primeiro verso é ditado pelos deuses”. Stravinsky era enfático: “a inspiração vem do trabalho.” Carlos Drummond de Andrade: “Não sou do tipo que senta e diz: vou criar uma poesia e conseguir.” Para ele todo ato resultava de um impulso e esse impulso era a inspiração. Primeiro a emoção. A Música Popular não é exceção. Nela há compositores famosos que repudiam a inspiração, classificando-a até de babaquice e outros que vivem a decantá-la. Desfilemos opositores e defensores.

Chico Buarque, se analisa: “Sou um bom artesão. Trabalho bem com as palavras. Só que às vezes vem um lampejo, uma idéia luminosa – e esse lance eu não domino. Por esse eu não respondo. Respondo pelo artesanato, tenho consciência do meu potencial. Mas os momentos mágicos – estes me surpreendem.” Edu Lobo: Têm canções que emperram na metade, parece que não vai sair mais nada e um dia acontecem. Tem outras que são rapidíssimas, dão até a impressão de já terem sido feitas, saem fáceis. Mas essa facilidade ocorre porque você se armazenou de tantas coisas, que a canção acontece inteira de uma vez. Ela não saiu do acaso, tinha que vir. Aí é que entra o negócio da inspiração, que eu acho bacana falar. O brasileiro é vidrado em negócio de inspiração, uma coisa quase que religiosa, realmente mística. O sambista brasileiro aguarda a inspiração no bar, ente uma cerveja e outra, espera que baixe o santo para que a canção venha a surgir. Acho que como proposta essa dependência da inspiração é a coisa mais atrasada e incrível. Você é que procura e cria seu trabalho e a música é o resultado de um trabalho muito grande e muito duro. Dorival Caymmi: “quando o tema se apresenta a ponto de ser uma canção, inesperadamentre a canção aparece, sai. Eu só faço nessa condição, por isso sou considerado preguiçoso. Eu não faço criação a não ser espontaneamente, eu não tenho fábrica de canções. Não sei fazer nada sob encomenda”.

Vandré ainda lúcido: “Sou um profissional de comunicação. Posso garantir que se você me pedir uma canção de amor, eu te dou uma canção de amor amanhã, tão boa ou melhor que todas que fiz.” Caetano: “inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e o milênio”. Tom Jobim: Tem aquele que diz: música é um produto de 5% de inspiração e 95% de transpiração. É verdade.” (1) Sem tomar partido passo a contar histórias de músicas de nosso cancioneiro que, segundo seus criadores, nasceram no momento em que foram atingidos pelo corisco mágico, fora dos computadores e das pipetas. Noel Rosa é sem dúvida alguma o mais lendário de nossos compositores. Torna-se difícil nos dias de hoje separar o homem do mito. Seus contemporâneos afirmam que era um privilegiado quanto à criação pois a sua relampejava em cima do fato,  “a clef”. Vamos mostrar alguns dos seus estalos. “Prazer em conhecê-lo” surgiu quando foi esnobado, numa festa, por uma antiga namorada, que lá se achava com o noivo. Em determinado momento ficaram frente a frente e ela fingiu não conhecê-lo, cumprimentando-o de maneira formal:

Quantas vezes sorrimos sem vontade
E escondemos um rancor no coração
Por um simples dever de sociedade
No momento de uma apresentação
Se eu soubesse que em tal festa te encontrava
Não iria desmanchar o teu prazer
Porque se lá não fosse, eu não lembrava
Um passado que tanto nos fez sofrer
Ainda lembro que ficamos de repente
Frente a frente
Naquele instante, mais frios do que gelo
Mas sorrindo apertaste minha mão
Dizendo então:
“Tenho muito prazer em conhecê-lo.”

Noel retirou-se da recepção, foi para o Café Ponto Chic e lançou na hora a composição no papel de embrulho. O clássico carnavalesco “Até Amanhã” nasceu no retorno de viagem ao Sul. O próprio Noel conta: “Quando eu deixei o Sul, deixava uma mulher e levava saudades da ternura dessa mulher. Fui para um canto do navio, pedi uma bebida, acendi um cigarro e o resto não foi preciso esperar muito. O samba nasceu espontaneamente.”

Até amanhã se Deus quiser
Se não chover
Eu volto pra te ver
Ó mulher.

Sobre inspiração ele dizia: “Eu só faço samba quando estou inspirado. Não procuro forçar mesmo porque não adianta. Quando a bossa falta nem um homem com poderes divinos poderia fazer um samba”. Prestem atenção na letra de “Naquele Tempo” também nominado de “Pra Esquecer”. Como narrativa é perfeita. Tem duas versões. Uma de Noel, quem sabe para alimentar o mito (era muito inteligente, capitalizava isso) onde diz que a música foi inspirada em um amigo que estava com a cabeça virada por uma mulher. Largou a família, montou-lhe casa e acabou abandonado. O compositor viu-o uma noite dançando com a ingrata fazendo a última tentativa de reconciliação. Já Almirante afirma que o mesmo foi composto para Julinha, um dos seus grandes amores:

Naquele tempo
Em que você era pobre
Eu vivia como nobre
A gastar meu vil metal
E por minha vontade
Você foi para a cidade
Esquecendo a solidão
E a miséria daquele barracão
Tudo passou tão depressa
Fiquei sem nada de meu
E esquecendo a promessa
Você me esqueceu
E partiu com o primeiro que apareceu
Não querendo ser pobre como eu
E hoje em dia
Quando por mim você passa
Bebo mais uma cachça
Com meu último tostão
Pra esquecer
A desgraça
Tiro mais uma fumaça
De um cigarro que filei
De um ex-amigo que outrora sustentei.

Noel ainda tem várias outras obras de quase vidente, mas creio que as citadas são bastante significativas. Grande narrador foi também Lupiscínio Rodrigues, “Quem há de dizer” é, na letra, ele até a última célula. Só que desta vez não foi ele quem sofreu a dor de cotovelo, e sim o seu parceiro Alcides Gonçalves. Ele conta como brotou.

Era pianista de uma boate onde havia uma mulher, Maria Helena. Enquanto tocava, controlava pelo espelho em frente ao piano, o movimento do salão. E dali assistia com infinita tristeza a sua Maria helena assediada por mil garanhões. Um dia Lupe entrou na boate, olhou para ele e para um canto onde sete ou oito homens disputavam a jovem, ficou debruçado na escada e depois aproximou-se dele e estendeu um papel: “Meu camarada, bota uma musiquinha nesta letra aqui.” Alcides com o coração implodindo musicou na hora:

Quem há de dizer
Que quem vocês estão vendo
Naquela mesa bebendo
É o meu querido amor
Repare bem que toda vez ela fala
Ilumina mais a sala
Do que a luz do refletor
O cabaré se inflama
Quando ela dança
E com a mesma esperança
Todos lhe põem o olhar
E eu o dono
Aqui no meu abandono
Espero louco de sono
O cabaré terminar
Rapaz leva esta mulher contigo
Disse uma vez um amigo
Quando nos viu conversar
Vocês se amam
E o amor deve ser sagrado
O resto deixa de lado
Vai construir o seu lar
Palavra, quase aceitei o conselho
O mundo este grande espelho
me fez pensar assim:
Ela nasceu com o destino da lua
Pra todos que andam na rua
Não vai viver só pra mim. (2)

Em 1929, Ary Barroso, recém-chegado de Minas tentava sem êxito se enturmar no meio artístico muito fechado daquela época. Ninguém lhe dava a mínima e ele ficava zanzando com um rolinho de músicas debaixo do braço. Certo dia, desanimado com os percalços, vinha caminhando pelo centro do Rio quando ouviu uma zoada. Era uma briga de mulheres. Uma delas estava sendo  hostilizada pela platéia e um garoto botava lenha na fogueira gritando: “Dá nela, dá nela.” Aquilo ficou passeando em sua mente e de repente se viu cantarolando:

Essa mulher há muito tempo me provoca
Dá nela, dá nela
É mentirosa
Fala mais que pata choca
Dá nela, dá nela.

A música venceu o concurso carnavalesco daquele ano e consagrou-o. (3). “Brasileirinho”, um dos mais belos choros, nasceu fruto de uma brincadeira. Um menino, primo da esposa de Waldyr Azevedo, pediu-lhe que tocasse alguma coisa num cavaquinho estropiado de apenas uma corda. Para satisfazê-lo começou a tirar a melodia na hora. Algum tempo depois teve que substituir Dilermano Reis que estava com o dedo machucado. Pediram-lhe que tocasse um choro, o que não estava programado. Não teve dúvida em atacar a primeira coisa que lhe veio à cabeça, ou seja, o chorinho de uma corda só. Como só havia feito uma parte, o resto improvisou.

Paulo Soledade não reluta em avalizar a existência da inspiração. Até hoje sente um frêmito quando recorda a maneira como ela o envolveu. Acabara de fazer uma cirurgia melindrosa sem garantia de sucesso. Deixemos que conte: “Quando senti que a operação tinha dado certo, abri a janela, batia um sol lindo. E eu juro que vi: as flores caminhando por uma estrada que dava para o sol e eu que não sou poeta em dez minutos escrevi “Estão voltando as flores”.

Vê, estão voltando as flores
Vê, esta manhã tão linda
Vê, como é bonita vida
Vê, há esperança ainda.

As flores de Cartola, as rosas, também surgiram encantadas. D. Zica ganhou umas mudas e plantou-as. Numa manhã, passados alguns dias, ao sair de casa encontrou, maravilhada, as rosas abertas. Gritou Cartola e perguntou-lhe: “Por que neascem tantas rosas assim, Cartola?”

Não sei Zica, as rosas não falam. A frase aportou em sua cabeça e não saiu mais. Abraçou-se ao violão e o resto veio como um rio, desaguando inteiro pela sala:

Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti.

A maloca do Adoniram existiu mesmo. Ficava na Rua Augusta onde hoje é um cinema. Era um hotel abandonado. Passando por lá um dia viu começar a demolição e surgiu a música:

Si sinhô num tá lembrado
Dá licença de contá
É que aonde agora está
Esse edifício arto
Era uma casa véia
Um palacete assobradado
Foi aí seu moço
Que eu Matogorosso e o Joca
Construímos a nossa maloca
Mas um dia, nóis nem pode se alembrá
Veio os home cas ferramenta
O dono mandô  derrubá
Peguemos toda nossas coisas
E fumo pru meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada tauba que caía
Doía no coração
Matagrosso quis gritá
Mas em cima eu falei
Os home tá com a razão
Nóis arranja outro lugá
Só se conformemo quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertô
E hoje nós pega paia
Nas grama dos jardim
E pra esquecê
Nóis cantemos assim:
Saudosa maloca
Maloca querida
Din-din-donde
Nóis passemo
Dias feliz nossas vidas.

“Cabeleira do Zezé” primeiro sucesso de João Roberto Kelly, em 1964, até hoje ainda cantado no Carnaval, nasceu na mesa de um botequim em Vila Isabel. Foi inspirada num garçom chamado José que cultivava enormes madeixas. O estribilho saiu na hora e todos no bar começaram a acompanhá-lo:

Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele é?
Será que ele é?

“Fio Maravilha”, conta Jorge Ben, teve suas primeiras estrofes brotando no Maracanã quando o jogador faz um gol maravilhoso, driblando vários adversárioos e entrando com bola e tudo, O compositor dizia na época: “Gosto muito do Fio, é um praça cem por cento, um sujeito simples, um amigo de verdade. Se Pelé e Garrincha e tantos outros tiveram canções em suas homenagens, o Fio é tão bom profissional como eles.” Ao fazer esse derramamento fraterno Jorge Ben nunca poderia prever que seria levado à justiça pelo jogador, reivindicando participação na vendagem de discos.

Foi um gol de anjo
Verdadeiro gol de placa
Que a galera agradecida
Assim cantava
Fio Maravilha, nós gostamos de você
Fio Maravilha,
Faz mais um pra gente ver.

“Se todos fossem iguais a você” foi a primeira composição da peça “Orfeu do Carnaval” que surgiu da recém formada dupla Tom-Vinícius. Segundo o Poetinha foi uma criação paralela: Enquanto Tom dedilhava o piano, ele escrevia a letra. Tudo espontâneo:

Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol, como a flor, como a luz
Amar sem mentir nem sofrer
Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo
Iguais a você.

“Por causa de você”, outra pérola da canção-amor. Nasceu de um flash genial de Dolores Jobim depõe: “ela fez a letra com um lápis de sobrancelha, o instrumento que tinha à mão para não perder aquele ótimo momento de inspiração. Isso aconteceu numa sala da Rádio Nacional quando eu dedilhava a melodia para um grupo de colegas. O Vinícius já preparava uma letra e Dolores fez a dela em cima da perna, em cinco minutos. Depois escreveu na margem do papel: “Vinícius, outra letra é covardia”. A do Vinícius estava quase pronta mas ele abriu mão mantendo a feita por Dolores.”

Ah, você está vendo só
Do jeito que eu fiquei
E que tudo ficou
Uma tristeza tão grande
Nas coisas mais simples
Que você tocou
A nossa casa querida
Já estava acostumada
Guardando você
As flores na janela
Sorriam, cantavam
Por causa de você.

A letra de “Arrastão”, segundo Vinícius foi feita em cindo minutos

Eh, tem jangada no mar
Eh, Eh, Eh, hoje tem arrastão
Eh, todo mundo pescar
Chega de sombra, João.

“Edu tocou a música, ele tinha só uma idéia que era uma coisa do mar, que eu também senti.”

Dia de luz
Festa de sol
E um barquinho a deslizar
No macio azul do mar
Tudo é verão
Amor se faz
Num barquinho pelo mar
Que desliza sem parar
Sem intenção, nossa canção
Vai saindo desse mar.

1961. Maysa. Sucesso estrondoso bossanovista. Ronaldo Bôscoli nos relata: “Já tive inspiração de letras em diversos lugares, diversas situações: tomando banho, meditando ou emocionado por um fato, como foi o caso do barquinho. Menescal e eu pescávamos muito em Cabo Frio. Um dia quando voltamos do mar sentamos numa varanda e escrevemos “O Barquinho” de ponta a ponta: ele criou a melodia, e a letra saiu inteira.”
Recuemos no tempo. “Periquitinho Verde” de Nássara e Sá Roriz fez grande sucesso no carnaval de 1938. Dircinha Batista foi ao estúdio gravar certa música e o insólito é que na hora é que foram ver que não havia com que preencher o outro lado do disco. Nássara que por acaso estava por lá lembrou-se do “Periquitinho” que só tinha uma parte pronta. Fez a Segunda ali mesmo. Resultado, a música já acertada não teve nenhuma repercussão e o “Periquitinho Verde” foi um estouro:

Meu periquitinho verde
Tire a sorte, por favor
Eu quero resolver
Este caso de amor
Pois se eu não caso
Nesse caso vou morrer
O que eu não quero
É depois de me casar
Ouvir a filharada
Noite e dia a me amolar
Pois juro que não tenho paciência
De aturar
“Mamãe eu quero mamar”.

Braguinha um dos mais ecléticos compositores, é do time a favor: “Nunca fiz força para fazer música. Todas saíram tão naturalmente que nem senti e quem sabe é esse o segredo do sucesso. “Certa vez ele mais Lamertine Babo e Alberto Ribeiro saíram quebrados do Cassino da Urca. Um trio tão respeitável não se apertou e começaram ali mesmo, para espantar a decepção, a compor “Cantoras do Rádio” que Carmem Miranda cantou com a irmã Aurora e mais recentemente Gal com Betânia. Vale a pena recordar a letra, muito bem feita:

Nós somos as cantoras do rádio
Levamos a vida a cantar
De noite embalamos teus sonhos
De manhã nós vamos te acordar
Nós somos as cantoras do rádio
Nossas canções cruzando o espaço azul
Vão reunindo num grande abraço
Corações de norte a sul
Canto pelos espaços afora
Vou semeando cantigas
Dando alegrias a quem chora
Canto, pois sei que a minha canção
Vai dissipar a tristeza
Que mora no seu coração.

Esqueci de dizer que estavam dentro de um lotação e que o motorista embevecido não cobrou a corrida. Pedro Caetano pelos idos de 1946 passava pelo morro de Mangueira e ficou ensimesmado com o silêncio, nenhum sinal de batucada. No caminho para Vila Isabel onde morava foi bolando um samba:

Mangueira, onde é que estão os tamborins
Ó nega
Viver somente do cartaz
Não chega
Põe as pastoras na avenida,
Mangueira querida.

A música caiu no gosto popular mas não na dos diretores da Escola que torceram o nariz, reclamando que a música veiculava uma imagem negativa. Pedro Caetano para aliviar os pruridos fez o samba desagravo “Mangueiras em férias”:

Quem foi que disse
Que eu não brinco mais
E procurou roubar o meu cartaz
Fala Diretoria da Mangueira
Toda profissão tem férias
Não é segredo pra ninguém
Sabe o que acontecia em Mangueira
Os sambistas estavam de férias também.

“Tico-tico no fubá” é uma das músicas brasileiras mais difundidas no mundo. Zequinha de Abreu criou-a durante um baile na sua cidade natal, Santa Rita do Passa Quatro. Quando começou a improvisar o chorinho ao piano todos saíram para o salão, balançando com o ritmo buliçoso. O compositor não conseguiu conter uma exclamação de alegria: “Vejam, essa gente até parece tico-tico no farelo.” De madrugada ao chegar em casa correu para o piano e passou a improvisação para a pauta com o título de “Tico-tico no farelo”. Só mais tarde ao compor a terceira parte é que deu o batismo consagrador: “Tico-tico no fubá”.

“Quem sabe”, de Joel de Almeida e Carvalhinho foi um estouro no carnaval de 1956. Eis sua história: Joel havia gravado para aquele ano, pela Odeon, a marcha “Camisolão” na qual não fazia fé: “quando vi a prova não gostei, não tinha balanço, não ia acontecer”. Essa conclusão o colocava desolado naquela mesa de bar na Cinelânida. Aproxima-se o compositor Carlos Morais e indaga qual a bomba que tinha para os festejos. Joel para não dar o braço a torcer, fingiu concentração para ganhar tempo, mandou que ele sentasse e de repente veio-lhe à mente um jingle de Miguel Gustavo para a Toddy: “Quem sabe, sabe/ conhece bem/ por isso Toddy/ prova o que tem.” Batucou na mesa modificando a letra:

Quem sabe, sabe
Conhece bem
Como é gostoso
Gostar de alguém

A Segunda parte saiu de sopetão para sua própria surpresa:

Ai, morena
Deixa que gostar de você
Boemio sabe beber
Boemio também tem querer

Carvalhinho entrou na parceria apenas para divulgar a música, pois Joel pensou em Pedro Caetano, mas ficou tão eufórico com a inspiração salvadora que encheu a cara e não conseguiu encontrar a sua casa. Ary Barroso andou reivindicando que teria tido participação na feitura, depois do sucesso, mas não colou.

“Esmagando Rosas”, a bela composição de Alcyr Pires Vermelho e David Nasser nasceu de um desafio de Francisco Alves e Alcyr, de que não conseguiria fazer uma música na hora. “Ele estava precisando de um sucesso, se sentindo por baixo. David ficou queimado com ele por duvidar de mim. Sentamos e criamos. Ele gravou, a gravação não ficou bem feita mas fez muito sucesso”.

Tu tens
No sol dos teus cabelos
A luz do velho sol nascente
Vem brincar, no azul do teu olhar
O azul verde do mar
O fascínio dos teus lábios lembram
A cor do sol lá no poente
E tens também
No seu porte divino
Toda nobreza romana
Mas se tu passas por mim
Cheia de orgulho e de graça
Seus pés no chão
Parecem rosas pisar.

Alcyr, logo que chegou ao Rio foi levado à casa de Lamartine Babo, já famoso. Lalá estava jantando e pediu que esperasse um pouco. Na sala, sobre o piano havia uma letra. Enquanto esperava começou a improvisar uma melodia. Lamartine veio correndo e ficou a escutá-lo. Medrou naquele momento “Alma dos Violinos”.

“Taí, que projetou Carmem Miranda, tem sua história. Joubert de Carvalho em fins de 1929 ia passando por uma casa de música quando o gerente, seu conhecido, chamou-o: “venha ouvir o disco de uma cantora nova.” Joubert achou a cantora interessante, tinha “presença” no disco e manifestou desejo de compor algo para ela. Eis que o gerente exclama: “Taí ela chegando”. Depois de conversar um pouco com Carmem já saiu com a composição na cabeça. No dia seguinte em sua casa começou a ensiná-lo e ao abordar um trecho explicando como gostaria que fosse a interpretação, ela interrompeu-o com muita graça: “Não precisa me ensinar nada não, que na hora da bossa, eu entro com a boçalidade.” O leitor recorde:

Taí
Eu fiz tudo
Pra você gostar de mim
Ai, meu bem
Não faz assim comigo não
Você tem, você tem
Que me dar seu coração.

“Maringá”, do mesmo autor tem um enredo curioso. Surgiu de uma cavação de emprego. O mineiro Joubert em 1931 foi procurar o Ministro da Viação, José Américo de Almeida, para pleitear uma vaga de médico. O oficial de Gabinete era Rui Carneiro, futuro senador, que sugeriu que fizesse uma composição sobre a seca. Joubert perguntou onde José Américo havia nascido. Era em Areias, palavra que achou sem vibração. “E você Rui, onde nasceu?” Eu nasci em Pombal” “Ah, Pombal dá uma boa rima”.

E chofre fez trecho da canção:
Antigamente uma alegria sem igual
Dominava aquela gente
Da cidade de Pombal
Mas veio a seca
Toda a chuva foi-se embora
Só restando então a água
Dos meus óio quando chora.

Como precisasse de outro nome de cidade perguntou a Rui onde a seca tinha sido mais impiedosa. Rui citou vários lugares, entre eles Ingá. Assim surgiu primeiramente Maria do Ingá e depois Maringá. Correu nos meios musicais que a letra era de Olegário Mariano mas David Nasser desmente. No entanto, Orlando Tejo, autor do delicioso “Zé Limeira, o Poeta do Absurdo”, garante que Rui Carneiro teve participação na letra e que todo mundo cantou a canção no seu enterro.

A conclusão sobre o título deste artigo deixo por conta dos leitores. Eu vou encerrando a minha parte transcrevendo a letra do samba “Poder da Criação”, de João Nogueira e Paulo Sergio Pinheiro. O leitor é que faça a escolha entre a sudorese e o encantamento:

Não, ninguém faz samba só porque prefere
Força nenhuma do mundo interfere
Sobre o poder da criação!
Não, não precisa se estar nem feliz
Nem aflito
Nem se refugiar no lugar mais bonito
Em busca da inspiração.
Não, ela é uma luz que chega de repente
Com a rapidez de uma estrela cadente,
Que acende a mente e o coração!
É, faz pensar
Que existe uma força maior que nos guia
Que está no ar,
Vem no meio da noite ou no claro do dia,
Chega a nos angustiar
E o poeta se deixa levar por essa magia
E um verso vem vindo, e vem vindo melodia
E o povo começa a cantar…

NOTAS

Na verdade a frase foi cunhada pelo gênio-monopolista americano Thomas Edison e dizia: “O gênio é de 1% de inspiração e 99% de suor.”

O interessante é que Francisco Alves foi procurado por Alcides no Rio, que o encontrou rodeado de mulheres e foi esnobado. A música começou a desapontar contada por outros e Chico então teve quase que implorar para gravá-la, pois o compositor cozinhou-o em banho-maria por meses antes de permitir a gravação.

David Nasser fala sobre seu talento: “O Ary fazia música por inspiração. Não fabricava. Tinha a febre santa. Onde a inspiração baixasse, sacava de uma pauta musical e numa espécie de taquigrafia gravava no papel a melodia. Depois chegava em casa e ia direto ao piano.”

A versão transcrita foi dada por um dos biógrafos de Adoniran. A do próprio compositor, bem menos prosaica é a seguinte: “O meu parceiro para compor ‘Saudosa Maloca’ foi meu cachorrinho. Toda manhã saio para passear com ele à procura de um poste amigo. O cachorro gostava de uma casa, que ia ser demolida e onde moravam marginais famosos, como Matogrosso, Joca, Corinthiano. Eles verdadeiramente existiram e já morreram. Ali tive a minha inspiração.”

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