Francisco Alves, sem dúvida, foi o mais popular cantor de sua época. Figura contraditória também. Alguns contemporâneos seus louvam seu coleguismo, sua solidariedade, seu fraternalismo. Outros relembram-no como sujeito cheio de empáfia, mal-educado e egoísta. Jacob do Bandolim em conversa com o autor disse que tinha racionados amigos e uma legião de inimigos cordiais. Sua rispidez intimidava um pouco as pessoas.
Era uma espécie de termômetro do bom-gosto musical, o que é bastante questionável, mas a verdade é que se ele não gostava ou se recusava a gravar determinada música, o compositor escondia isso, pois esta se desvalorizava e se outros cantores soubessem da negativa dele também não gravavam. Antônio Almeida confirma sua pouca sociabilidade e diz que o período em que fez dupla com Mário Reis lhe foi benéfico, pois este bem nascido, bacharel em Direito, deu-lhe umas buriladas. Mesmo assim acabaram estremecidos como contou Mário a Sergio Cabral. Em 1933 a dupla desfez-se e andaram se degladiando pelo jornais. Francisco Alves ainda deu o maior azar. Bide e Marçal levaram dois sambas, para que cada um escolhesse o de sua preferência. Chico escolheu primeiro um chamado “Vivo Sonhando” que não fez sucesso. Sobrou para Mário o antológico “Agora é cinza”. Chico soltou fumacinha. Mário Reis conta outro fato que demonstra a grossura do ex-amigo. Nilton Bastos já estava moribundo, rodeado de amigos quando Chico entrou no quarto cantando: “Quando eu morrer, não quero choro nem vela…(1)
Na década de trinta sua voz não tinha rival. Foi sua fase de ouro. As gravações daquela época atestam isso apesar das deficiências técnicas e eu, avalizo. Mas se críticos modernos o repudiam por seu vozeirão operístico, outros antigos não fizeram por menos e espicaçaram-no por acharem ser um desperdício tão bela voz estar voltada para os ritmos populares.
Orestes Barbosa no seu livro “Samba”, de 1933, diz que era o maior cantor do Brasil. E mais: “Discutido, combatido, imitado, porque fez escola, tema eterno de todos os debates do meio em que se agita, a prova de seu mérito é exatamente esse murmúrio que lhe cerca a personalidade singular”. No mesmo ano o cronista Vagalume lançava seu precioso livro “Na Roda do Samba”, com opinião bem diferente da de Orestes: “O Chico Viola, por exemplo, é autor de uma infinidade de sambas e outras produções que agradaram, saídas do bestunto alheio”.
Outro jornalista, J. Efegê, em sua coluna faz uma defesa não muito convincente: “Não é tanto assim. Francisco Alves interpreta muitos sambas e permite, algumas vezes (sic) que o nome dos autores apareça nos discos”. Vagalume continua o ataque: “Chico Viola por exemplo, não é plagiário. Ele é apenas o padrasto, o pai adotivo de uma infinidade de sambas.” Almirante contesta: “Elementos da Música Popular, injustamente criticam o notável artista dizendo-o um simples comprador de samba, mera balela. É necessário fazer justiça a ele.”
No seu livro “No tempo de Noel Rosa”, derrama-se deslumbrado ao falar no cantor, quando este acercou-se dele que ouvia uma gravação e cantou junto. “Nada no mundo então eu poderia ser mais grato do que verificar que aquela celebridade conhecia minha melodia, sabia de cor os meus pobres versos.” Vagalume continua aceso: “O Chico Viola compra o que é dos outros e grava na Casa Edison – é uma mina! Tendo porém o cuidado de boicotar ou prender, o que não consegue negociar.”
Em 1936, Alexandre Gonçalves Pinto, no livro “O choro”, joga confete: “Francisco Alves é primus interpares dos cantores da atualidade. Hoje é o farol que ilumina o meio”. Alguns pesquisadores da MPB reconhecem que Chico Alves comprou muita música, mas fazem a ressalva de que foi através do seu faro que esses vendedores saíram do ostracismo. Dizia-se na época que o malandro-compositor Brancura tomava no peito sambas de outros e levava ao Chico como seus.
Francisco Alves tinha enorme tirocínio para negócios. Criou a primeira Central Produtora de Samba, quando contratou Ismael Silva e Nilton Bastos para produzirem composições exclusivas.
Com a morte de Nilton substituiu-o Noel Rosa. Foi uma sociedade tulmutuada. Noel era um espírito liberto e Chico tentou enquadrá-lo. Segundo Almirante Francisco Alves transacionava com carros usados e Noel lhe comprou um tendo ficado com a corda no pescoço. Chico propôs então controlar todas as suas atividades artísticas, inclusive direitos autorais. O próprio Chico conta seus arrufos com “O poeta da Vila”: “Numa excursão ao Sul eu me responsabilizei por Noel com sua mãe. Infelizmente lá ele continuou as farras. Ameacei mandá-lo de volta e ele melhorou um pouco. De volta ao Rio soube que Noel ficara aborrecido comigo achando que eu queria guiar sua vida e que do seu ressentimento nascera o samba “Vitória” que Silvio Caldas ia gravar sem saber a origem. Apareci no dia da gravação e cantei no coro gozando a cara do Noel nos versos que me espinafraram:
Antes da vitória
Não se deve cantar glória
Você criou fama
Deitou-se na cama
E eu que não estou dormindo
Vou subindo, vou subindo
Enquanto você vai decaindo.
Mais farpas de Noel em “Mas como?” que o próprio Chico gravou sem perceber as indiretas:
O meu dinheiro é macho e não cresce
Só o teu cresce e aparece
Teu grande medo lá no botequim
É pagar o café pra mim.
E continuam os obuses em “Na esquina da vida”:
É na esquina da vida
Que assisto à descida
De quem subiu
Faço o confronto
Entre o malandro e pronto
E o otário, que nasceu pra milionário.
Faz blague com as composições de Chico:
E no fim da irradiação
Vem a “Voz de Violão”
Que é mais antiga que o Casé
“Dona da minha vontade”
Saiba Vossa Majestade
Que cantarei o que quiser.
Tinha fama de pão-duro. Ele mesmo fala a respeito: “De fato nunca fui de jogar pela janela o dinheiro que ganhava trabalhando noite e dia. Se alguém me chama de pão-duro irrita-me menos do que me chamasse de “mordedor”, que nunca fui. Matei muita fome e várias vezes tive a surpresa de ouvir de amigos que outrora sustentara, frases como essa: você é um sovina Chico”.
Herivelto Martins comentou com o autor que ele tinha pavor de ser espoliado, mas que era um sujeito de temperamento firme. Nassara confirma sua personalidade forte: “Certa vez num show no Cassino da Urca ele exigiu e foi atendido em só cantar se ganhasse o mesmo que Pedro Vargas.”
Uma das pessoas que o conheceu melhor foi Haroldo Barbosa, uma espécie de eminência parda, sócio turfista que até influenciava na escolha do repertório: “Francisco Alves era ao natural um homem ríspido, às vezes demasiadamente áspero, porém amolecia quando um cavalinho seu punha o focinho para fora da baia. Ele só era mão fechada para certas coisas, porque ficava contente em ajudar os amigos. Quando casei ofereceu uma de suas casas para que eu morasse.”
Prossegue Vagalume lançando suas zarabatanas: “Não é da roda nem conhece o ritmo do samba. Conhece, entretanto os fazedores de samba, os musicistas, enfim, “os enforcados”, com os quais negocia, comprando-lhe os trabalhos e ocultando os nomes. Dizem, quase todos que o Chico é um magnífico intérprete e mais nada.
Afirmam que é incapaz de produzir qualquer coisa, pois que o que é bom não é seu o e que é seu não presta. “Eu, particularmente discordo em parte da saraivada acima. Não que considere Chico um santo, sei que se acoplou a muitas músicas sem delas ter participado, mas seu talento de melodista torna-se inatacável diante da lista abaixo de letras que musicou com parceiros que nunca aceitariam conchavo: “A voz do violão”, “Dona da minha vontade”, “Canção da criança”, “Há uma forte corrente contra você”, “Lua nova”, A mulher que ficou na taça”, Velhas cartas de amor”. Klécius Caldas, co-autor nesta última confirma esse seu dom. Mas tiveram atritos pois Chico quis mudar o andamento de outra música de Klécius, Ximango, ameaçando não gravar caso ele não aceitasse sua imposição. O autor fez pé firme e o cantor acabou cedendo. Entretanto só voltaram a se falar uma semana antes da morte do artista, na casa de David Nasser, quando Chico pretendeu gravar “D. Cegonha” que já estava prometida a Blecaute. Carlos Maul in “O Rio da Bela Época”o chama de “cantor tinha ouvido de ladrão”.
O jornalista Antônio Luiz, em suas recordações sobre Ary Barroso, conta: “Chico Alves com aquela sua maneira mal educada de dizer as coisas, cuspindo sempre para os lados, pegava Ary pelo pescoço e levava numa caminhada que não passava da calçada da antiga Galeria Cruzeiro e ao pé do ouvido lhe fazia revelações. Depois o Ary contava: “Ele comprou uma letra de um malandro lá do Estácio e não é que a letra tem bossa? Vai fazer sucesso. Mas o Chico não sabe o que fazer da letra. Vou compor a música para o carnaval.”
O locutor Reinaldo Dias Leme, que durante oito anos foi seu apresentador aos domingos na Rádio Nacional depõe: “Foi uma figura discutida. Diziam-no profundamente egoísta e pão-duro. Tenho dele a melhor das impressões. Era cordial e tinha pelos colegas o maior respeito. Cansei de vê-lo estimulando os novos valores que surgiam, sempre com um ar paternal de veterano que conhecia as pedras do caminho.” A história da Música Popular cita alguns exemplos, tendo pedido a contratação de Aracy de Almeida, Orlando Silva e João Dias. Sempre que podia ia ajudá-los no coro das gravações. Orlando Silva fala dele: “Apesar de responsável pelo meu lançamento jamais teve medo da concorrência.”
João Dias recebeu esse comentário: “O caro é bom, tem boa voz e ainda ajuda a mãe. Merece um empurrão.” Fernando Lobo dá sua impressão: “Era estranho, sisudo, esquisitão, mas um profissional muito compenetrado. Era cordato quando não lhe contrariavam .” O seu aborrecimento com Francisco Carlos evidenciava isso. Quando este foi eleito a melhor voz do ano, no início de sua carreira, causou irritação no imbatível Rei da Voz, que não se conformou com a derrota e ficou estremecido com o iniciante. Roberto Martins relata seu choque com ele: “Um excelente camarada dentro do princípio de instrução que ele tinha. Brigamos por causa da música “Cai, Cai” (Cai, cai/ Eu não vou te levantar/ Cai, cai, cai/ Quem mandou escorregar) que entreguei ao Joel e Gaúcho para gravarem. Chico que era da mesma gravadora ficou sabendo pelo editor Mangione da existência da música e se interessou em gravá-la. Este me comunicou o fato mas eu queria a composição gravada pela dupla. Mangione até insinuou que esta poderia ser afastada. Quando Chico me procurou cantei-lhe a música sem nenhuma inspiração, desafinando propositalmente. Ele achou horrível. Depois que estourou percebeu que tinha sido ludibriado por mim e queria sair no braço, me chamou de moleque: “Quer ser mais malandro do que eu que sou da Lapa.”
Apesar de muito esperto era inculto. Herivelto explica: “Era um homem que tinha vindo de um berço muito pobre, veio da rua mesmo. Tinha pouca instrução, tinha uma vivência entre choferes, que era uma classezinha brava na época e convivendo com a malandragem da Lapa. Então era um homem assim meio grosso.” Nestor de Holanda conta uma anedota que circulava a seu respeito: Chico certa vez estava numa roda noturna quando resolveu ir dormir., Despediu-se: “Até amanhã, vou agora cair nos braços do ORFEU.” Alguém observou: “Ei Chico, está faltando um M no nome do teu deus mitológico.” Deu um tapinha na testa: “Isso mesmo, é para os braços do ORFEOM.” Numa gravação em dupla Carmem Miranda onde surgia a palavra dilúvio não houve meio de acertar e repetiu várias vezes “delúvio”. E se seguem os prós e os contras.
O radialista Paulo Roberto traça-lhe este perfil: “Chico realmente marcou época no rádio brasileiro. Onde seu nome era anunciado o público acorria, os auditórios lotavam. É bom lembrar que não havia máquina publicitária para promover como existe hoje. Só com talento se chegava ao topo.” Lúcio Rangel também é voto a favor: “Chico fazia qualquer coisa de sua voz, que era absolutamente maravilhosa.” Russo do Pandeiro que excursionou com ele: “Ele era difícil, não ia com qualquer um. Quando ele gostava da pessoa era até bem amável. Ele era estourado, violento, nervosíssimo. No navio, quando íamos para a Argentina, sua mulher Célia Zenatti esqueceu a documentação. Ele estourou, perdeu a linha e queria que ela ficasse em Santos”. Em Miguel Pereira onde tinha um sítio os habitantes habituaram-se a vê-lo caminhar insone pelas madrugadas. Bide da Flauta tem queixas: “O único que não ligava muito para mim – que Deus o tenha, mas ele era muito enjoado era o Francisco Alves.” Hervê Cordovil teve um entrevero com ele porque Chico cismou de cantar seu samba com ritmo diferente. Como recusasse, Chico em represália anunciou o samba como “do meu amigo Orestes, omitindo Hervê.” Teve um pega também com seu parceiro na “Voz do Violão”, Horácio Campos, a quem acusou de ter lhe passado a perna. O homem era tinhoso hem! Leonel Azevedo, belo Compositor, autor de “Lábios que beijei”, “Cabocla” e outras canções eternas conta seu episódio: “Era um grosso, irráscivel, turrão. Provocava muitos casos com os colegas. Agora entretanto eu quero ressaltar uma qualidade formidável que ele tinha: era um grande profissional. Quando ele dizia que gravava uma música podia se contar que gravava mesmo. Sobre isso aconteceu comigo um caso muito significativo. Eu tinha feito uma música com J. Cascata chamada “Nosso Romance”. Chico gostou ao ouvir no rádio e quis gravar. Nessa época houve um desentendimento comigo, quando fomos às vias de fato. E ele cortou relações comigo. Depois encontrou o Cascata e falou na música e o Cascata sabendo da nossa briga disse que a música era só dele com medo que o Chico não gravasse. Bom, no dia marcado para o ensaio eu não quis entrar no estúdio. Quando Chico pegou a letra e viu meu nome falou pro Cascata: “Olha vou gravar essa música por duas razões, primeiro porque é muito bonita e segundo porque é tua.
Pelo teu parceiro eu não gravava não, que ele é muito folgado.” O crítico J.L. Ferrete que o conheceu quando tinha 19 anos e era o programador em São Paulo tem uma impressão lisonjeira: “Chico deixava todo mundo à vontade – eu tratava-o de você – apesar de aparentar por certas maneiras bruscas certo egoísmo e até mesmo grosseira. Atencioso telefonou-me certa vez para dizer que estava providenciando o envio para mim de cópias de discos dele que eu não tinha, conforme prometera e eu nem esperava mais. “Para Cristóvão de Alencar era uma pessoa contraditória e muito vaidoso e que gostava sempre de levar vantagem. Gostava de ser badalado. Klécius Caldas diz que lembra um rei pela altivez e pelo séquito de bajuladores que vivia a acompanhar-lhe os passos, derretendo-se em mesuras e rapapés. Denis Brean, compositor paulista, bem que podia ser um dos cortesãos. Vejam como se refere ao cantor: “Nós que somos republicanos fervorosos somente baixamos a cabeça ante a majestade de Francisco Alves, o Rei da Voz. Francisco Alves I e único, é o capítulo mais brilhante de nossa música popular. “Jonas Vieira na sua biografia de Orlando Silva, transcreve palavras do compositor Newton Teixeira, onde este relata que quando Chico lançou o futuro “Cantor das Multidões”, visava puxar o tapete de Silvio Caldas, também com muito prestígio e seu principal concorrente na época. Silvio lembra que Chico era muito dominador e a explicação que tem para a manobra de Chico é que este deve ter melindrado por ele ter se recusado a participar de um programa de rádio comandado pelo Rei. Seria uma represália. Agora que se sabe desse detalhe quem garante que Silvio não gravou o “Vitória” de Noel para dar propositalmente uma fisgadela no Chico? Assis Valente conta que mostrou sua música “Good-Bye Boy” a Carmem Miranda, ela se entusiasmou e se comprometeu a apresentá-la num show de teatro. Francisco Alves que coordenava o espetáculo não gostou e cortou o número na hora. Assis ficou arrasado mas Josué de Barros esqueceu o veto e quando Carmem entrou no palco tocou a introdução, ela cantou, e foi uma consagração. Chico Alves ficou totalmente passado. Na véspera de sua morte fez uma apresentação pública em são Paulo. Entre suas últimas palavras gravadas um apelo: “Agora vou cantar uma canção intitulada “Canção da Criança” que foi lançada para as crianças.
Peço a vocês que colaborem porque eu estou procurando colaborar com aqueles que necessitam bastante que são as crianças pobres do nosso Brasil. Ajudem as crianças e ajudam a todos.” Chico abriu mão de seus direitos em benefício de um orfanato. Sua morte fez com que fossem vendidas milhares de cópias. Aí está uma colagem imparcial do Francisco Alves gente, despido das alegorias do mito, para que tirem suas conclusões quanto ao título do artigo.
Mário Reis fez confusão, pois estes versos de “Fita Amarela” de Noel Rosa foram criados depois da morte de Nilton Bastos. João Máximo e Carlos Didier na excelente biografia de Noel, deduzem que o mais provável é que Chico tenha cantado outros muito populares na época: “Quando eu morrer não quero choro nem nada/ Eu quero ouvir um samba/Ao romper da madrugada.”