A pedidos, bis

Um dos capítulos do meu livro anterior, “Música Popular Brasileira – Histórias de sua gente”, que mais agradou aos leitores foi o que intitulei “Esses Destoaram”, onde comentava os tropeços dados pelos letristas do nosso cancioneiro. Fiz uma abordagem bem-humorada, sem ferir suceptibilidades, citando inclusive escorregadelas de literatos famosos. Estavam os nossos compositores, portanto em boa companhia.
Já que foi apreciado, garimpei mais algumas “jóias”. Para mostrar que a desinformação, o despreparo e a incompatibilidade com o vernáculo não são patente das pessoas advindas das camadas mais modestas da população, da qual faz parte a maioria dos nossos compositores, reproduzo as mancadas que Marcus Pereira recolheu entre as respostas de um exame da Escola de Propaganda de São Paulo.

Um candidato definiu o avião Caravelle: “fantasma célebre que diz-se ter existido na França, num dos seus castelos”. Guilherme Figueiredo era segundo outro, gramático e autor de livros infantis. Mark Twain “é um notável cronista que escreve na Manchete”. Angelo Roncalli, papa João XXIII, foi “um piloto italiano que fez um “raid” num pequeno avião pelo mundo”. Suriname (Guiana Holandesa) “é um método de propaganda por percepção indireta,” para um dos geniozinhos e para outro uma “ex-rainha”. Gabriela, Cravo e Canela “as três naus de Colombo.” Nepotismo “é um regime soviético.” Tzar nome de bebida e monocultura criação de macacos. Brilhantes são as gafes cometidas pelos advogados que se candidataram a juiz em Pernambuco no final de 87. Vejam que cultura. Um escreveu “a de se esclarecer” em lugar de “há de se”, outro ruminou “deverão serem”, criaram o verbo “oriundar”, escreveu-se “sobre tudo” e “de-le” assim separados. E chega!

A licença poética é algumas vezes usada com muita permissividade, resultando em imagens insólitas. Jorge Faraj ótimo letrista, colocou numa valsa a expressão “olhos aurorais”, o que resultou num comentário irônico de Alberto Ribeiro, quando lhe pediu opinião: “Olhos cor de aurora são olhos vermelhos e se estão vermelhos é porque ela pegou uma tremenda conjuntivite. O caso não é valsa, é de colírio.”

Orestes Barbosa, outro ótimo poeta criou metáfora indigente chamando o violão de “cofre da mágoa maviosa, onde eu guardo a chorar meu coração”. Em “Neusa”, Antônio Caldas e Celso Figueiredo chamaram a aurora de “sutil”. “Sorris da minha dor” de Paulo Medeiros até que começa bem:

Tranqüilos e felizes sonharemos
Uma porção de sonhos venturosos
E aos beijos de eterna felicidade

O fecho porém estraga tudo com sua dubiedade:

Há de ser nossa vida um ROSAL DE ANSIEDADE.

Eis como Constantino Silva cantou seu coração choramingas:

E quando me despedi
Mangueira em peso chorou
Juro que senti
Meu coração LACRIMOU.

Penúria criativa foi a de Ary Barroso na marcha “Pica-pau”:

Olha o pica-pau
Picando o pau lá no jardim
O meu coração é um pica-pau
E não se cansa de bater e de sofrer.

Comparar coração com pica-pau é forçar demais a barra. Por falar em comparação, Arthur Montenegro compara a mulher a uma rolinha, deusa e estrelas. Até aí tudo bem, mas rolinha PÁLIDA é de enrubescer:

Desperta, oh bela
Oh divina estrela
Vem fazer-me feliz
Vem jurar ser minha
Oh PÁLIDA rolinha

Sem dúvida aterrador é o “Olhar de Vagalume” de Telles e Juliana:

Teu OLHAR DE VAGALUME
Ilumina essa paixão
Eu me acabo de ciúme
Me alvoroça o coração

Bem eu sempre pensei que a luzinha do vagalume ficava em outro lugar… E voz com fragrância? Garanto que ainda não viram, ou melhor, sentiram. Pois Francisco Alves e Luiz Iglésias detectaram o fenômeno em “Veio D’água”:

Vem de longe, de longe, do passado
Reavivar uma ilusão qualquer
Traz na voz UM PERFUME DE MULHER

O samba “Edital” De Almir Guineto e Lucervi Ernesto tem uma profundidade que nem com batiscafo se chega lá:

Apesar das peneiras tamparem o sol
Vou cantar dos escombros do arrebol
Apesar dos “Colombos de pedigrees”
Vou cantar
Nas carreiras do povo e ouvir bis
Apesar dos sanhaços da lucidez
Vou cantar
O que querem cantar vocês.

Totonho também andou filosofando em “Fogueira de não se apagar”:

Você é o trunfo do meu jogo
E eu a dama que te fez voltar
Ao cavaleiro na arena, no fogo!
Jogando lança pra me conquistar
Na lapidagem nobre do capricho (?)
Você sublime diamante meu
Com as digitais do coração eu visto
Essa paixão num grande apogeu.

Essa duas só com bula. “Nos Mares do Sul” do Duo Jubileu surge um maremoto inédito:

A borboleta azul
Nos mares lá do sul
Bailava alegre
A festejar o nosso amor
O sol sempre a brilhar
E o mar a murmurar
BANHAVA O CÉU
Que estava cheio de esplendor.

Laura Porpino na canção “A Força do amor” define-o de maneira mais estranha que já vi:

O amor não tem parentes
Não tem irmão nem aderentes
Ele está N’afinidade
N’atração da espécie
E intelecto.

Só rindo. Outro mimo: “Aceno de Adeus” de Poeta, L. Rocha e Jones Jr.:

Os seus olhos feiticeiros
Enfeitiçam os meus
Na hora da despedida
Eu vi dos seus lindos lábios
UM ACENO de adeus.

Que beiçola, hem. No meu baú achei este quebra-cabeça batizado pelos autores, Ricardo Guinsbure e Ronaldo Periassu, de “Poesonscópio de mil novescentos e quarenta e quinze”:

Seu rosto selvagem em chama
Rindo estrelas lambuzadas de verniz
Nas botas de mel e chocolate
Guardo as impressões digitais
Foi eletrocutado no sinal luminoso
Caleidoscópio de ciúme
O flash no mercúrio cromo
O rádio grita o nunca mais
O vestido é miniorganza.

Pior que os olhos de pirilampo são estes que Catulo canta:

Os olhos teus são
Âmbulas de dor
São dois nectáreos
De amargores!

É isso aí, o pessoal inventa demais e acaba descambando para o exagero. Roberto e Erasmo Carlos já entraram nessa. Em “O Portão” descrevem um hilário cachorro que “sorri latindo” e em “Os Seus Botões” cantam o voyeurismo de uma capa de chuva muito discreta que observa os amantes:

Chovia lá fora
E a capa pendurada
Assistia tudo
Não dizia nada.

Liberdade de criação foi o que fez Noel Rosa em “O Orvalho vem caindo”, Ary Barroso com “esse coqueiro dá côco” Jorge Ben com “chove chuva”. etc.

A palavra varonil exerce um fascínio muito grande nos compositores possivelmente pela rima fácil com Brasil:

Fuzileiro naval
Alma heróica e varonil
O teu porte triunfal
Enche de orgulho o meu Brasil.

Ia esquecendo o talentoso autor: Milton Amaral. Uma outra eu não resisto em reproduzir todinha pelo maravilhoso bestialógico que encerra e pela adulação também. “Getúlio Vargas” de Jaime Guilherme:

Grande e filantrópica
É vossa consciência
Que a nação inteira
De vós espera.
Bendita alma, reflexo de prudência
Unificado ao título da ciência
Pois a verdade, vestida de quimera
Insigne do amor, gênio que tolera
O ódio, a traição
O amargor com clemência
Deixamos a ordem e o progresso
Em seus anos
A pátria excelsa
A agonia que entramos
Desfilamos a bonança
O esplendor e o florescer
Getúlio suscetível
Espírito varonil
A vós confiaremos
Os destinos do Brasil
Sendo todos por um
No cumprimento do dever.

Mais um ufanista: “Café Brasileiro” de Alfredo Schutz e Juvenal Fernandes:

Do sertão brasileiro
Abraça o globo
Num peito fraterno
Mostrando o valor do país
Ó café VARONIL.
Desfraldes o nosso pendão
Branco-verde-amarelo
O céu azul… Cruzeiro do Sul…
Café do Brasil.

Outra vez Laura Porpino com o samba “Rio, Aquarela mais bela”:

Rio de Janeiro
És aquarela dos encantos do Brasil
Entre as cidades és a mais bela
Deste recanto varonil
Com o metrô
Tua cidade reveste
De ordem e progresso
Para ter grande sucesso.

Buguinho, Henrique Filho e Mário Torrão não ficaram atrás em matéria de mau-gosto:

E a natureza lhe abraçou
Na Colônia, na Coroa imperial
E logo a República chegou
SEMPRE ENCONTRANDO O SEU PORTE  NATURAL .
Mário Zan mudou a nacionalidade do Padre Anchieta, que virou paulista no dobrado “Brasil Gigante”:
São Paulo, linda terra de Anchieta
E do Bandeirante destemido.

Pereira Passos, por sua vez, andou ressuscitando gente ao compor um samba homenageando os fundadores da primeira Escola de Samba:

A primeira Escola de Samba
Nasceu do Estácio de Sá
Eu digo isto e afirmo
E posso jurar
Porque existiam naquele tempo
Os professores do lugar
Mano Milton, Mano Rubem e Edgar
E outros que não quero lembrar.

Bom, dos três professores citados, dois já tinham ido dessa para melhor quando a Escola foi criada. Só se deram um empurrãozinho lá de cima.

“Rainha da Flora”, de Cacique e Francisco do Carmo tem um trecho capaz de provocar profundas reflexões nos botânicos:

Se eu pudesse declarava
No mesmo instante mostrava
Quem meu coração adora
Sua nobre cor morena
Comparo à açucena
Ou senão com a flor da aurora
Que de todo vegetal
Tem seu brilho natural
É uma flor que não descora.

Exemplo de autodiagnóstico foi o feito por Laurentino Pereira e João Teixeira Ramos em “Trapo de Amor”:

Adeus querida, que eu sempre amei
És felicidade que eu não encontrei
Hoje eu sou um trapo, estou jogado fora
E PERDI A MEMÓRIA por quem tanto amei.

Elias Marujo, Luizinho e Tourinho apareceram no carnaval de 87 com “Chora, chora, chora” que é mesmo de se debulhar:

Chora, chora, chora
Diz até que ama
Na realidade quer te ver na lama
No calor daquele beijo
Puramente desleal
Infeliz foi o desejo ANTIMATRIMONIAL
Ser a dona de um lar
Mas sem pudor e sem moral.

“Mera Fantasia”, bolero mal-educado de Adilson Ramos e M. Mattos:

O meu apartamento está vazio
À espera de você que me deixou
Tudo fora mera fantasia
De um amor que não PRONTIFICOU.

E para encerrar com fanfarras a declaração enfática da cantora Lurdinha Maia numa boate carioca: “Terei o prazer de cantar agora um FOLCLORE  de minha autoria.”

Os compositores citados neste artigo não devem se sentir melindrados, ele, reitero, só tem o escopo de divertir. Não o escrevi impulsionado por nenhum ranço elitista ou purista de linguagem. O nosso poeta popular é o mais criativo do mundo e a nossa música a mais rica. Portanto nada de ressentimentos. Agora, se for para citar algo de gosto duvidoso é preferível cultivar o “talento do silêncio” que Carlyle elogiava.

Projetos de arquitetura e decoração em Brasília. Transforme e valorize seu imóvel com um projeto criativo e surpreendente. Agende uma visita ainda hoje.